Amazonense de Manaus, ele foi professor doutor da UFRJ, poeta, crítico literária e cofundador Sociedade Budista do Brasil (SBB), religião que o tornou um dos maiores especialistas da linhagem tibetana Sakya
AMAZÔNIA REAL
ELVIRA ELIZA FRANÇA
02/07/2023
O escritor, ensaísta, poeta, crítico literário e professor doutor amazonense Rogel de Souza Samuel morreu neste domingo (2), às 6h20 (horário de Brasília), vítima de insuficiência respiratória grave por consequência de uma pneumonia e complicações de diabetes no Hospital São Lucas, no Rio de Janeiro. Segundo sua família e amigos, o professor, de 80 anos, ficou internado por mais de três meses na UTI. Ele era viúvo e sem filhos. Seu livro mais conhecido é “O amante das amazonas”, um romance que narra os acontecimentos da época do Ciclo da Borracha na Amazônia e fatos ocorridos no contexto da decadência daquela atividade econômico-exportadora na primeira metade do século XX.
Rogel Samuel lecionou por mais de 40 anos na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Foi co-fundador da Sociedade Budista do Brasil (SBB), religião que o tornou um dos maiores especialistas da linhagem tibetana Sakya, tendo como gurus Sua Santidade 41o. Sakya Trizin e Sua Eminência Jetsun Kushok. “Os verdadeiros amigos estão sempre conosco. Não existe distância nem espaço nem tempo que nos separe. Siga em frente meu amigo. Sempre rumo à evolução espiritual e à felicidade. E que todos os Budas o abençoe e amparem”, disse a amiga e budista Goretti Menezes.
Rogel Samuel era neto do comerciante da borracha Maurice Samuel, autor do romance “Jaguaretê, o guerreiro”, e filho do casal: o francês Albert Samuel, navegador dos rios amazônicos, e da funcionária pública e bibliotecária amazonense, Maria Stella de Souza Samuel. Nascido em 2 de janeiro de 1943, era também webjornalista e mantinha um blog de literatura.
Segundo Neuza Machado, mestre e doutora em ciência da literatura/teoria literária, pela UFRJ, Rogel é um representante da literatura pós-moderna da segunda geração, alguém que não se adapta às regras constituídas da literatura, e apresenta suas personagens como sujeitos reais, com suas verdades fragmentadas, tal como é o homem do século XX.
“O certo é que seus versos são incomuns, e o incomum não é privilégio de todos. Por ser incomum, ainda não há como caracterizar sua obra poética. Que é uma narrativa (ou várias) não há dúvida. Narrativa fragmentada, como fragmentado, é o homem do século XX .[…] Eis aqui o sujeito que não aceita escrever por escrever”. Então, Neuza Machado cita um poema de Rogel: “Não. Não escreverás um só texto mas o que for dito e luminoso”.
A carreira de escritor e professor
Numa entrevista concedida ao Blog Tataritaritatá, de Luiz Alberto Machado, em 21 de novembro de 2007, Rogel contou que começou sua vida literária na infância, após ler um trecho da “Elegia” de Camões, num livro didático escolar. Depois, leu Manoel Bandeira e ganhou de presente a ontologia “Obras primas da poesia universal”, de autoria de Sérgio Millet. Inspirado nas leituras que fazia, começou a escrever e quando estava com 16 pra 17 anos já publicava seus textos em jornais de Manaus. Disse que, naquela época, bastava colocar o texto na mesa do editor e a publicação saía no dia seguinte.
Com 18 anos, Rogel publicou seu primeiro conto “Sofia”, no dia 16 de abril de 1961, no jornal Diário do Comércio, na época dirigido pelo jornalista Phelipe Daou. Ao lado de seu texto, estava o poema “No reino da poesia”, de Carlos Drummond de Andrade, e na mesma página uma crônica de Guilherme de Figueiredo, e um artigo de Sérgio Milliet.
Foi nesse mesmo ano, em 1961, que Rogel mudou-se para o Rio de Janeiro, com o objetivo de estudar letras para seguir a carreira de escritor. Mas no novo contexto não teve a sorte de publicar seus textos em jornais, porque havia um “clube fechado” para novos escritores. Por outro lado, ele teve as portas abertas para o trabalho na TV Rio, num trabalho que não durou muito tempo, porque era no turno noturno, e ele estudava letras no período matinal, na UFRJ, tendo que acordar cedo no dia seguinte para ir à aula.
“Eu tive as portas abertas para a televisão, através do irmão de uma amiga de Manaus que dirigia a parte comercial da TV Rio, onde trabalharam na mesma época, creio, o Boni e o Walter Clark. Trabalhei na redação por muito pouco tempo e larguei. Era à noite, eu tinha faculdade de manhã”, disse Rogel ao blog.
No curso de letras da UFRJ, Rogel foi aluno de grandes personalidades da literatura brasileira como: Alceu Amoroso Lima, Mattoso Câmara, Afrânio Coutinho, e Anísio Teixeira. Para sobreviver, dava aulas em escolas particulares pobres, em turmas do primeiro e segundo graus de escolas públicas municipais e estaduais. Também lecionava em cursinhos e escolas de pessoas com condição econômica mais abastada. Dava aulas de latim e também em faculdades particulares. Por trabalhar nos três turnos, não tinha muito tempo para escrever. Depois, prestou concurso para o curso de mestrado e também ingressou como professor na mesma universidade onde estudou, e ali completou o doutorado, chegando à categoria de professor adjunto da UFRJ. No início dos anos 90, do século passado, já estava aposentado.
Produção literária
Rogel Samuel começou a publicar seus livros no Rio de Janeiro, entre eles, “Manual de teoria literária” (Editora Vozes), “Primeiros passos” (Editora Brasiliense), “O que é Teolit?” (Marco Zero), “Novo manual de teoria literária”(Vozes), “Teatro Amazonas” (Edua), além da segunda edição de “O amante das amazonas” (Itatiaia).
O livro “O amante das amazonas” foi traduzido para o espanhol, que requereu um trabalho de dez anos, com leituras e entrevistas para a construção do enredo, no qual ele integrou dados da realidade com a ficção. “Foram dez anos de trabalho, mais de 100 livros lidos e dez versões. Mesmo essa segunda edição foi revista. O livro tem aquilo que você viu, é um mar de estórias em torno daquele Palácio construído no meio da selva. Primeiro fiz uma pesquisa, entrevistei pessoas que ainda se lembravam dos fatos. Li cerca de 100 livros. Depois, devido ao excesso de informações, fiquei perdido. Aí resolvi contar para um gravador. Depois de ouvir muitas vezes, voltei a narrar no gravador. Então fiz as várias versões escritas, quase dez. Há algo de romance policial ali, além de ficção científica”, conta Rogel ao Blog Tataritaritatá.
“Teatro Amazonas” foi outro livro que Rogel escreveu e que ficou muito conhecido como romance de ficção, no qual ele contextualiza Manaus no período áureo da borracha, vivendo o processo de modernização, na transição da monarquia para a República. Nesse livro, ele apresenta dados históricos sobre quatro governadores do Amazonas do final do século XIX e início do século XX: José Lustosa Paranaguá (17/03/1882 a 11/03/1884), Gregório Thaumatugo de Azevedo (01/09/1891 a 27/02/1892), Eduardo Ribeiro (02/11/1890 a 05/05/1891 e 27/02/1892 a 23/07/1896) e Fileto Pires Ferreira (03/07/1896 a 04/04/1898). O romance aborda a polêmica decisão de um projeto de construção de um teatro luxuoso, nos moldes europeus, em plena selva amazônica, para satisfazer o gosto da elite local. No livro, Rogel retrata as disputas e as intrigas políticas e sociais da época e a misteriosa morte de Eduardo Ribeiro, responsável pela modernização de Manaus, cidade que os historiadores passaram a denominar de Paris dos Trópicos.
Eduardo Ribeiro foi o primeiro governador negro e depois o primeiro senador negro do Amazonas, e era discriminado pela elite local, devido à ousadia do projeto modernizador para Manaus. De acordo com as obras históricas clássicas desse período, ele foi encontrado morto em sua chácara, sendo atribuída a morte por suicídio. Contudo, Rogel apresentou sua versão ficcional da morte de Eduardo Ribeiro: um assassinato passional, cometido pelo jornalista Lima Silva, cuja amante, a prostituta Marinalva, o havia traído com Eduardo Ribeiro. O homicídio, na versão de Rogel, foi incentivado pelas elites monárquicas escravocratas que odiavam o negro político que havia se destacado no Brasil e no exterior, pela promoção do crescimento e do desenvolvimento do Amazonas.
Para divulgar seu trabalho literário e de outros escritores, Rogel dá ênfase ao uso dos recursos e facilidade para publicar na internet. Segundo o que relatou na entrevista ao blog Tataritaritatá, o futuro da literatura está na internet, porque o livro está cada vez mais caro, e as facilidades da web promovem o acesso mais fácil dos leitores às publicações e às músicas.
“Eu gostaria de ver o Ministério da Cultura disponibilizar toda a obra de Villa Lobos em mp3, mesmo pagando ele os direitos autorais. Porque é muito difícil ouvir certas coisas. Hoje sou um escritor da rede. Se você colocar meu nome num site de busca vai me encontrar. […] Vejo na Internet o futuro da literatura. Liberta o escritor da grande mídia, dos editores. O escritor logo encontra seus leitores ali. Estou publicando minha próxima novela ali, na Internet. Não passo sem Internet. Entro na Internet várias vezes ao dia. Meu mundo hoje é o mundo da Internet”.
Rogel Samuel gostava muito de viajar para outros países e entrava em contato com diferentes culturas. Disse que lastima a forma como o Brasil trata seus escritores e as respectivas obras. “A atual literatura tem muita gente boa. Em cada estado brasileiro você encontra uns 10 bons escritores, nem sempre eleitos pela mídia. Os grandes jornais só privilegiam a literatura estrangeira. Mas estão perdendo prestígio para a Internet. Os estudantes universitários só pesquisam pela Internet, não pelos jornais. Eles são os nossos grandes leitores, hoje. Você precisa ver como o Canadá promove os seus escritores. Nas livrarias eles estão na frente. Portugal os divulga no mundo. O governo espanhol mantém uma verba especial para a «nova poesia». O governo alemão compra parte da edição de todo escritor alemão, para incentivar. Há uma verba para a aposentadoria dos escritores. Nas bibliotecas, a consulta a escritores alemães é paga. Muitos governos se orgulham de seus escritores. O Brasil nada faz. Aqui o escritor não tem prestígio. Se você está em Paris e alguém pergunta: «O que você faz?», responda «Sou escritor». Será olhado com muito mais respeito”.
Repercussão
O doutor em literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ), Marcos Frederico Krüger, professor aposentado da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), e membro da Academia Amazonense de Letras, comenta sobre a importância de Rogel Samuel na literatura brasileira. “Como escritor, Rogel Samuel organizou um livro fundamental para os estudos acadêmicos sobre literatura: o “Manual de Teoria Literária”, que teve inúmeras edições, o que é raro no meio editorial brasileiro. Além do próprio Rogel, outros professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), instituição à qual ele pertencia, colaboraram neste livro, que expõe um painel vigoroso sobre as diferentes vertentes literárias. Sempre utilizei esse livro em minhas aulas na Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Essa obra foi, posteriormente, ampliada em seu conteúdo com “Modernas teorias literárias”, outro livro de excepcional conteúdo”.
Marcos Frederico continua: “Como romancista, Rogel Samuel escreveu O Amante das Amazonas, livro que já foi objeto de teses de Doutorado. Li esse romance com grande prazer e lembro uma observação feita pelo professor doutor Antônio Paulo Graça, também da UFAM. Disse ele, com toda razão, que algumas passagens lembravam Gabriel García Márquez. Como poeta, Rogel integrou diversas antologias, inclusive a que foi elaborada por Assis Brasil. Seu verso flui e revela aspectos inusitados da palavra, o que o consagra como poeta de excepcional qualidade. A participação de Rogel Samuel se estende além das fronteiras do Amazonas, posto que seus livros servem de estudo e embasamento para as novas gerações que se dedicam aos estudos literários”.
Com suas aulas e criações literárias, o amazonense Rogel Samuel influenciou muitas pessoas e também criou muitas amizades literárias, como a que estabeleceu com outro amazonense, o premiado escritor e dramaturgo José Ribamar Mitoso, doutor em Sociedade e Cultura na Amazônia e professor da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Eles se conheceram no Rio de Janeiro, em 1986, quando Ribamar ainda era jovem e estava com 23 anos e Rogel tinha 44 e já era professor universitário.
“Rogel ensinou gerações a escrever e a curtir a literatura. Sou um desses aprendizes. Ele foi o mais sofisticado escritor latino-americano de literatura de ficção que meus olhos alcançaram. Teatro Amazonas talvez ou, com certeza, seja o mais bem formalmente estruturado romance histórico desta latino-américa. A mais bem temperada mistura entre ficção e história deste continente. Esta é sua semântica existencial para a literatura deste planeta. Um ser iluminado. Meu mestre.”
Numa recente visita que Ribamar fez a Rogel no hospital, viu o amigo intubado, com os olhos fechados e inertes, e não acreditou que ele estivesse tão ausente como parecia estar. Começou a conversar com ele como fazia quando se encontravam, antes da pandemia e relembrou o último encontro de ambos no restaurante Arataca, em Copacabana (RJ), local especializado na culinária amazônica.
Ribamar começou a relembrar as conversas, as risadas e as personagens presentes no restaurante, assim como as brincadeiras e o sonho que teve depois com aquele local. Nesse sonho, estavam ele, Ribamar, e Rogel, que se encontravam com os escritores cariocas Machado de Assis e Rubem Fonseca. Logo depois, apareceu Carmen Miranda dançando a música “Copacabana”. O sonho inspirou Ribamar a escrever o conto realista mágico “No amazônico coração Arataca de Copacabana”, que foi enviado para Rogel ler, um pouco antes da pandemia, e Rogel disse ao amigo que ele era uma versão tropical do Marcel Proust.
Enquanto Ribamar falava com Rogel, viu os olhos do amigo se abrindo serenamente com o olhar fixando-se no seu, demonstrando que ele estava ouvindo as palavras e sabendo quem estava ali, ao seu lado, no leito hospitalar, mesmo que ele não tivesse condições de dar qualquer resposta verbal. Então Ribamar disse a ele: “Rogel, precisamos da sua presença para rir e continuar a escrever e continuar nos iluminando.”
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